quarta-feira, 17 de julho de 2013

BANVILLE no BRASIL (por Sérgio Rodrigues)

Banville e a máquina de produzir epifanias



Reconheço que o alerta pode afugentar leitores deste texto que mal começa, mas paciência: muitas vezes, ler demais sobre um escritor atrapalha a leitura do próprio escritor. Veja-se o caso do irlandês John Banville, que acaba de vir à Flip a bordo de seu último romance, “Luz antiga” (Biblioteca Azul, tradução de Sergio Flaksman, 336 páginas, R$ 39,90).

Quando se sabe que o próprio Banville se considera um raro – talvez até único, embora isso não fique claro – artista verdadeiro das letras num cenário internacional povoado de artesãos no máximo competentes e outros fornecedores de conteúdo para o mercado editorial, um representante implacável da literatura highbrow num mundo definitivamente middlebrow, é tentador transformar a leitura num teste e adotar, após meia dúzia de páginas, uma de duas posturas: ficar a favor de tal juízo presunçoso, encontrando a cada linha a confirmação de seu acerto, ou ficar contra o mesmo juízo e descobrir em cada linha seu desmentido categórico. Em outras palavras: ou Banville é um gênio ou é uma besta.




Não por acaso, encontram-se por aí as duas leituras. Ambas são desculpáveis, pois é o personagem arrogante construído pelo próprio romancista, sobretudo a partir de sua premiação com o prestigioso Booker pelo ótimo “O mar”, em 2005, que as induz como reações demasiado humanas. Por mais que poses sejam elementos indissociáveis da forma como escritores são lidos, o fato pouco surpreendente é que Banville não é nem um gênio, nem uma besta. “Luz antiga” me pareceu um livro com momentos excelentes e algumas limitações sérias.

O narrador Alex Cleave, ator de teatro aposentado, divide sua história entre dois tempos principais: recorda com detalhes o caso amoroso que teve na adolescência com uma mulher casada, a sra Gray, mãe de seu melhor amigo, enquanto administra no presente as ruínas de um casamento destruído há dez anos pelo suicídio de sua única filha, Cass, e acaba se envolvendo no projeto de um longa-metragem sobre o misterioso e meio picareta teórico da literatura Axel Vander. Nessa aventura cinematográfica, inédita em sua carreira, aproxima-se de uma grande estrela das telas, Dawn Devonport, seu par romântico na história, com quem desenvolve uma relação ambígua.



O tema central explícito, martelado com insistência, é a fluidez da fronteira entre memória e invenção. Presos a um passado enigmático mas inapelável, a cujos despojos dão o nome de presente, os personagens são solitários, fraturados por perdas terríveis, praticamente incomunicáveis. Ao sabor das circunstâncias, podem se roçar como pedras, projetar sombras uns sobre os outros, mas a impermeabilidade de cada vida é um dado. Todo mundo é indecifrável para Alex, inclusive ele mesmo. Há nessa visão de mundo – que talvez fosse mais apropriado chamar de atmosfera – alguma beleza trágica, mas uma espécie de conformismo também. Excluída a ação, a possibilidade de transformação, o narrador é pouco mais que um ser contemplativo.

Preenche o vácuo uma trama cada vez mais intrincada de fios simbólicos entre os personagens (alguns deles já abordados em romances anteriores de Banville, ainda inéditos no Brasil, o que talvez sirva de álibi para seu subdesenvolvimento atual). Axel, anagrama de Alex, pode estar envolvido na morte de Cass, que por sua vez revive na figura de Dawn. O autor da biografia em que se baseia o tal filme, J.B., tem as iniciais do autor do romance e um estilo rebuscado que Alex ridiculariza como “retórico ao extremo, totalmente sintético, artificial e atravancado”. A piada com a crítica que o próprio Banville costuma colher por sua prosa barrocamente elaborada é divertida. É também, dos muitos tiques pós-modernos do livro, um dos poucos que não dão a impressão de terem sido encaixados ali para fazer pose (de novo).



O que funciona mesmo em “Luz antiga”, em seus melhores momentos, é a principal arma de Banville em todos os seus livros: o tal estilo “retórico ao extremo, totalmente sintético, artificial e atravancado”, de tradução tão difícil quanto a poesia – tarefa inglória da qual Flaksman se desincumbe, em geral, de modo satisfatório. Com suas descrições minuciosas e musicais de sensações, paisagens, objetos, peças de roupa, partes do corpo, cheiros, cores, sons, é um estilo menos parecido com o de Vladimir Nabokov do que fazem crer alguns críticos, mas que compartilha com ele a obsessão por “acariciar os detalhes”, como pregava o mestre russo:
A sra Gray no espelho, no reflexo do espelho, estava nua. Seria mais elegante, talvez, dizer que estava despida, eu sei; mas nua é a palavra. Depois de um primeiro instante de confusão e espanto, fiquei impressionado com a textura granulada da sua pele – imagino que devesse estar arrepiada, de pé ali – e pelo fulgor opaco que emitia, como o brilho de uma lâmina de faca embaçada. Em vez das nuances de cor-de-rosa e pêssego que eu poderia esperar – Rubens tem muitas satisfações a nos dar – seu corpo exibia, de maneira desconcertante, toda uma gama de tons muito atenuados, do branco de magnésio ao prateado e ao zinco, um amarelo esbatido, o ocre pálido, e até mesmo, em certos pontos, um ligeiro esverdeado além da presença, nas concavidades, da sombra de um musgo malva.
Máquina de produzir epifanias, a prosa de Banville dobra a aposta no poder de fogo da tradição propriamente “literária” num momento em que o ar de nosso tempo a identifica cada vez mais com o beletrismo. É uma voz que se presta tão bem ao tom evocativo de uma paixão adolescente que isso acaba por provocar um desequilíbrio entre os dois tempos principais do romance, levando o leitor (ou pelo menos este leitor) a lamentar cada retorno ao presente – até aquele retorno, no fim, que vai provocar uma completa reavaliação da estranha história de amor.

* Texto copiado do site: http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/

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