quarta-feira, 29 de maio de 2013

O visível e o invisível no novo livro de Linhares Filho (por Vicente Jr.)




 
         O poeta José LINHARES FILHO é dessas pessoas “necessárias” com as quais todo ser humano, todo artista merece conviver. A retidão de seu caráter e o estro seguro de sua poesia tornaram-se lugar comum na cena literária brasileira, especificamente, na literatura do Ceará. Desde o livro “Sumos do tempo”(1968), como voz emblemática do Grupo SIN, ao livro “Notícias de bordo” (2006), indicando que há um porto onde é preciso chegar, e agora, no volume de que falamos, o que temos é um poeta cada vez mais seguro do seu oficio, um “lavrador da linguagem”, no dizer do ensaísta Carlos Augusto Viana, e um fiel avalista das múltiplas possibilidades do gênero lírico. Tem sido um imenso prazer acompanhar, com o olhar mesmo de discípulo, a trajetória iridescente desse vate da poesia cearense.
 
         O título do livro, “Junto à Lareira Invisível”, justificado nos poemas 1 e 2 de “Momentos de rescaldo”, nos coloca em silêncio na sala da casa do poeta, que por ser fundada em solo nordestino não deve ter mesmo uma lareira. Mas as cadeiras dispostas lado a lado, levemente fronteiriças, de forma a que se vejam os olhos dos seres invisíveis ali sentados, dão a dimensão exata da serenidade que passeia por cada canto desse lar acolhedor e vivo, em tempos, como se vê na memória iconográfica que reitera a maioria dos poemas inscritos na obra. Não os vemos a eles, mas ali estão os bibelots, os souvenires, os spielzeugs, os mimos trazidos na algibeira de suas andanças e marinhagens. Um convite ao mistério insondável da aventura de existir; isso tudo é o novo livro de Linhares Filho.

Junto à Lareira Invisível
Nós dois junto a esse emblema da velhice:
escutas o que digo e ontem te disse.
Tal lareira transcende, em nosso clima,
as demais. Seu calor real nos sublima.
Contemplamos unidos o passado
e, a cada dia, esplende, transformado,
o sabor com saber do nosso afeto.
Queimam-se as horas, passageiro objeto,
e arde-nos ainda o peito, em calma embora.
Nos lábios, muito beijo se demora
entre o calor do fogo e o frio do inverno,
e faz crescer, não só no espaço interno,
a chama deste amor, que nos apanha
e em nós atua com uma força estranha.


        Na primeira parte, denominada “Momentos impressivos da Terra Santa”, depois de ser apresentado bibliograficamente por Alves de Aquino e Horácio Dídimo, a invisibilidade dos pastores, que caminharam para Belém na esperança de ver o Menino, preludia, a desoras, o natal, um Natal que não se enxerga, mas que na prática a gente sente. As coisas não vistas por nós são materializadas pelo olhar do poeta: a pedra da agonia, o calvário, o Gólgota... como também não se viu o corpo imolado do Cordeiro porque estava Ressureto. No mea culpa dos de Emaús, no lamento confesso da tripla negação de Pedro, alteia-se o manto sagrado da Mãe assunta. É invisível também o sorriso cúmplice dos ocupantes das cadeiras, por terem cruzado juntos o bojador de cada dia, na barca frágil e descolorida pelo Tempo.

No Gólgota
Doce cristo, perdoas teus inimigos.
Perdão demos aos nossos, paz e abrigos.
Como atendes a súplica de Dimas,
no último instante, ao menos, nos redimas.
Porque nos dás a Mãe, confiando-a a João,
Consagramos a ela o coração.
Clamas ao Pai: extremo é o abandono.
Todos, porém, atrais: a cruz é um trono.
Tens sede: mais que a física, a de almas.
Se as levamos a ti, logo te acalmas.
Em ti se cumpre toda a profecia:
salva-se a humanidade que caía.
E com o selo da entrega ao Pai suprema,
Com sangue e amor assinas teu poema.

Dialética do Tempo
De bem longe o tempo grita?
Com efeito, em nós ele habita,
Em nossas veias palpita.
Cruel o tempo nos limita,
Fazendo-nos a alma aflita.
Reserva-lhe uma desdita:
Levá-la logo proscrita.
Fundo o tempo nos atinge:
Dentro de nós ele ringe.
O tempo a todos constringe,
Mais do que isso: nos restringe.
De cinza a vida nos tinge.
O tempo de bom se finge.
Acaso o tempo é uma esfinge.

       Era para ser invisível, mas salta aos olhos, muito claramente, a ontologia linhariana na dicotomia Ser e Tempo. O tempo é matéria, é coisa que está ou passa, pródigo de afeto generoso que se transforma pelo saber. O beijo invisível é o breve espaço de tempo que fica oscilando entre os lábios, num ósculo que se demora e se realiza, de mãos dadas, na frente dessa mesma lareira, como uma força estranha que age sobre os seres. Contra essa mesma força um valor mais alto se alevanta, a tática do rescaldo, que ainda assim não impede que sob as cinzas encontrem-se vivas, as brasas, a centelha da poesia, pura metalinguagem, aprendida com os mestres modernistas, como se vê em “Ode à palavra” e “Procura da poesia”, exercícios de admiração ao denodado clã dos Andrade.

      Perfeitamente visíveis são as justas homenagens: à falta de Lavras e seus filhos ilustres;  à tenra infância, presa dentro dos álbuns antigos; a Castro Alves, que fez na palma o  livro germinar; ao engenho irretocável de Bilac e Pe. Antônio Tomás, príncipes por excelência; ao sensacionismo não intelectualizado do “Cisne negro” e as suas variações do branco. Na mesma bandeja de prata dos agradecimentos, as flores de ouro ofertadas a amigos como Sânzio de Azevedo, Arthur Eduardo Benevides, Batista de Lima, Carlos Augusto Viana e a Ir. Francisca. Um quê de religiosidade, bem posto no poema para Hassinger, sem a efusão sacerdotal de um Horácio Dídimo, mas com a simplicidade de um missionário, franciscano, inclusive no gesto de poetar.
       Quem tiver olhos para ver, então veja! O poeta vê o homem. Mas transforma-se a contemplação em ação, numa preocupação com o outro para muito além do social, um altruísmo natural, comum somente aos homens de bem, como no poema para os mineiros do Chile, presos como Anteu, no ventre da mãe-terra. Ou ainda no seu engajamento em favor de tudo que é lídimo, de tudo que é certo, como no texto dedicado à pequena Malala, ícone contemporâneo da eterna luta feminina, sobejando uma piedade social lúcida, sem panfletarismo, apenas um eu que sente a dor do outro, que luta e sabe que a Poesia também exerce esta função.

Á Menina Malala, Vítima do Talibã
Pela tua coragem desafiante,
vestida de tua frágil estrutura,
mando-te um beijo de ternura diante
do insano fanatismo da cultura

que te ofendeu, tolhendo-te o vibrante
desejo de saber. Não te censura
o mundo, antes te apoia, embora o instante
tema, em que a sorte possa ser-te dura.

De sangue e paz, teu nome é um grito forte,
a enfrentar como um repto,  a própria morte.
Tua audácia não foi ato qualquer!

Repúdio, pois, às ações do Talibã
à sua crueza e intransigência vã,
Pelo total resgate da mulher.


      Por outro lado, cresce a invisibilidade luminosa de sua gratidão por Otacílio de Azevedo, Barros Pinho, José Alves Fernandes e Francisco Carvalho, desmaterializados, mas não menos visíveis que o próprio autor lavrense. Avultam os subentendidos, sussurram os muitos silêncios e escondem-se pejados os adjetivos pomposos porque a poesia de Linhares Filhos almeja sempre o Sublime, embora vazada em coisas terrenas, em condições humanas, de uma forma quase torguiana, se assim se pode dizer, uma vez que a busca do Homem pelo Amor, por si mesmo e pelo outro, na poesia linhariana, encontra sentido máximo na Terra (Lavras da Mangabeira ou suas lembranças) e no próprio Homem, porque ele é ele mesmo e suas circunstâncias. O Amor, presente de Deus ou dos deuses, torna-se visivelmente gustativo nos lábios de Mariazinha que, próxima ou longe, salva a disposição das cadeiras, não sai da cabeça e nem da pena do poeta. Magnífica tem sido, então, a poesia de Linhares Filho, mas confesso que dessa vez... EU NÃO GOSTEI!

       Não gostei do tom de despedida um tanto plangente, como se fosse esse o seu último canto. Tudo bem que um dos leit motives de sua arte poética é visivelmente o Tempo, consubstanciado na velhice, filosoficamente a antesala da Morte, como o é num Alvares de Azevedo, num Cruz e Sousa ou mesmo num Manuel Bandeira. Fui quase às lágrimas no poema “Mensagem a minhas filhas”, de versos sábios, porém tristes, que dizem “ Em pouco, não terão mais meu conselho”. Ou ainda, nas linhas cinzas de “Enquanto rego o meu jardim” ao dizer “Pela última vez eu rego as plantas (...) e mais grave é que pressinto/mirando essas plantas verdes/ não mais tornar a aguá-las nem as ver.” E aqui, humildemente, o discípulo repreende o mestre: esse tom de despedida não cabe no poema.

Mensagem a Minhas Filhas

Minhas filhas, seu pai chega à velhice:
Aproveitemos bem, pois, esse instante.
Guardem sempre as verdades que lhes disse
E o exemplo meu, se foi edificante.

Perdoem-me algum desdouro e o que ferisse.
Recordem meu amor, meu dom cantante.
Pat vencer a existencial mesmice,
Como ensinei, só lúcido desplante.

Em pouco, não terão mais meu conselho.
Se eu do além puder vir ao seu espelho,
talvez possa ajudá-las contra o aí.

De não ser melhor pai, mais eficiente,
Apaga-se o remorso todo em frente
À grande glória de eu ser simples pai.

       Consola-me saber, teoreticamente, que a voz que fala em um poema é apenas um eu-lírico, que finge pessoanamente a dor que todo mundo sente. Pois das tantas coisas que aprendi de Poesia, nas salas da UFC e na vida, a mais significativa ouvi de Linhares Filho: “Os grandes poetas, os que perseguem o Sublime, os que conseguem denotar conotando, jamais desaparecerão”, nunca serão invisíveis, pois existirão para sempre nos livros e na nossa memória, como nos advertiu Drummond: “As coisas tangíveis/tornam-se insensíveis/à palma da mão/ Mas as coisas findas/ muito mais que lindas/ essas ficarão”.


*Vicente Jr é Doutor em Literatura e Cultura pela UFPB e professor adjunto da Universidade Estadual Vale do Acaraú, em Sobral/CE.

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...