quarta-feira, 10 de abril de 2013

VERGONHA (por Pedro Salgueiro)

(Chácara Flora, no Benfica)

 
(Dedicada à triste memória do Bangalô Azul e da Chácara Flora,
vítimas da burrice em conluio com a ganância e a incompetência)

Algumas cidades conseguem preservar seu passado, criam leis, instituem penas, fiscalizam construções. A nossa burrinha loura desmiolada pelo sol, não – sente vergonha da sua história. Não há um prédio mais antigo, uma fachada original que cedo ou tarde não seja derrubada, para em seu lugar – altivo e impotente – surgir um daqueles quadrados blocos de concreto que a nossa “genial” e criativa arquitetura moderna andou engendrando durante o século passado inteiro. Tudo bem que nossa acadêmica elite queira construir seus monumentos ao mau gosto, todas as épocas tiveram direito de fazê-lo; porém, contudo, no entanto e entretanto (além do vulgar mas útil “mas”), não precisaria destruir o antigo. Por que não fazê-lo ao lado? – até para que futuras gerações possam comparar e, quem sabe, chegar a uma síntese.
Além dos construtores e das nossas cegas instituições públicas, o sujeito comum dos mortais, o novo proprietário de velhas casas, o simples comerciante que quer modernizar seu ponto, não pensa duas vezes (contando com a famigerada incompetência de nossos órgãos fiscalizadores do patrimônio – que tranqüilamente cochilam em suas repartições, depois do merecido pasto) e bota abaixo prédios com mais de um século de existência: em seu lugar constroem um “criativo” jirau quadrado, com portas largas, um portão de garagem ou porta de ferro, revestem-no com lajotas de banheiro da mesma cor, e ainda exibem por aí um triunfal riso de superior inteligência.

(Bangalô Azul, na Aldeota)
Quando não conseguem destruir velhas construções, disfarçam as belas fachadas com indefectíveis marquises de alumínio. Tem que se observar muito, arriscando-se até a ser atropelado, quem queira avistar alguma fresta de estilo arquitetônico antigo entre os flandres de nossas lojas no centro da cidade. Mas, entretanto, no entanto e contudo, além do pedante “porém”, de quando em vez, se observa através de alguma marquise enferrujada os caprichos do velho estilo: descascado, reboco por cair, uma janela de madeira gasta, não muito raro um arbusto crescendo em plena fachada, a boca triste de um antigo “jacaré” estilizado, aberta como a rir de nossa imbecilidade.
Faz algum tempo uma rede de supermercados comprou o prédio e enorme terreno da antiga fábrica de sabão Siqueira Gurgel, do começo do século XX – em poucos dias pôs abaixo toda a construção e, no lugar exato da fábrica de um século de existência, erigiu um impotente estacionamento. Não precisaria ser sensível e inteligente o “novo dono” do tal estabelecimento – nem atuantes e atentos nossos órgãos de fiscalização –, mas (entretanto, no ent... etc. etc.etc.) apenas um pouco menos burro, e preservaria nem que fosse a fachada da velha fábrica, colocaria lá a administração do supermercado ou a portaria do estacionamento, e ainda por cima faria uma imponente homenagem à nossa histórica fábrica dando seu nome à mega-bodega.
Mas atenção, senhores dorminhocos dos institutos de preservação do patrimônio, professores empolados de nossas universidades de História, Arquitetura, Geografia, etc., defensores da cultura em geral, professores e saudosistas de nossa escrotinha loura desmazelada pelo sol, em cada rua de nossos bairros, a cada dia, um prédio antigo é destruído, seja pela burrice humana, ou pela fúria da natureza; mas, entretanto, no entanto, etc. e tal, principalmente pelo descaso e incompetência de nossas administrações municipais, estaduais e federais. Amém!


* Publicada inicialmente no livro de crônicas Fortaleza Voadora (Fortaleza: Edição do Caos/FUNCET, 2007) e reproduzida no jornal O Povo.

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